09/04/2021 às 18h55min - Atualizada em 10/04/2021 às 00h00min

O Metano e o Boitatá: a ciência desvendando os “causos” de assombração

(*) Luciane de Godoi

SALA DA NOTÍCIA NQM
Shutterstock

A lenda do Boitatá é uma das mais conhecidas do folclore brasileiro. A palavra boitatá teve sua origem do tupi-guarani e significa boi (cobra) tatá (fogo). Também foi descrita em um texto do padre jesuíta José de Anchieta, no séc. XVI. Assim, como conta Anchieta, outros relatos dão conta de que uma bola de fogo, sempre era vista à noite, correndo para lá e pra cá na floresta. O caso (ou causo) é que o boitatá, além de ser uma lenda do folclore brasileiro é um mito com raízes portuguesas. 

Existem algumas variações desta lenda, porém, todas convergem para o mesmo fato, de que se trata de uma bola de fogo, que ora aparece no meio da floresta ou até mesmo em rios, tomando a forma de uma tora em brasa, ou até mesmo em cemitérios, esperando que as almas penadas paguem os seus pecados. 

Estas estórias ou “causos” de visagem na forma de bola de fogo ou serpente de fogo estiveram presentes na minha infância, nos contos de terror à beira do fogão a lenha ou nos causos de onça do meu avô. 

O fenômeno do boitatá que assustava criancinhas nada mais é do que a ignição espontânea do gás natural, um derivado do petróleo. O fogo-fátuo (Ignis Fatuus), fenômeno que ouvi falar depois de muito tempo, me chamou atenção e me chama até hoje, dada a sua beleza e complexidade.  

Em locais onde há grande decomposição de matéria orgânica, como é o caso de regiões pantanosas, que muitas vezes são cercadas de vegetação densa devido à vasta oferta de adubo (matéria orgânica em decomposição), assim como nos cemitérios antigos que muitas vezes vemos em filmes de suspense. 

Essas labaredas são ocasionadas pela presença do metano, um dos componentes do gás natural. Vale lembrar que o gás natural não é o que conhecemos dos botijões, aquele é o GLP (Gás Liquefeito de Petróleo) que é obtido pela destilação do petróleo na refinaria e é composto por propano e butano, que são hidrocarbonetos (moléculas orgânicas que contêm apenas carbono e hidrogênio), o propano com três carbonos e o butano tem quatro carbonos. 

Além disso, o GLP é líquido e, por isso o nome – Gás Liquefeito de Petróleo e o gás natural é gasoso, formado por metano e etano, também hidrocarbonetos, sendo que o metano tem um carbono e o etano tem dois carbonos, apenas. 

O gás gerado nas regiões pantanosas, além de metano, também é formado por compostos como a fosfina e o difosfano, que em contato com o ar atmosférico entram em ignição espontânea.  

A fosfina é um gás derivado do fósforo (elemento de símbolo químico P) incolor muito inflamável. A fórmula da fosfina é PH3 - hidreto de fósforo e é muito comum encontrar esta substância em regiões de cemitérios, devido a decomposição dos cadáveres.  

Muitas pessoas inclusive já viram em cemitérios à noite o gás entrar em combustão na superfície do solo, principalmente nas noites mais quentes do ano, quando há o aumento da temperatura e a pressão atmosférica e uma chama de cor azulada com 2 a 3 metros de altura surgir do nada (história de assombração).  

Mas o caso é que a fosfina só entra em ignição se houver a presença do difosfano, um dos hidretos binários de fósforo, de fórmula molecular P2H4, responsável pela ignição espontânea da fosfina. 

Mas o leitor deve estar se perguntando também se onde há metano há petróleo? Não necessariamente. Apesar de o gás natural ser um gás associado ao petróleo, ou seja, normalmente em todos os locais de exploração de petróleo há um bolsão de gás natural que envolve o reservatório, o gás natural desta espécie não tem nada a ver com o fogo fátuo. 

Eu mesma já ouvi comentários de que onde existe a ocorrência de fogo fátuo, existe também um reservatório de petróleo. Pode até ser, mas para ter certeza disso é preciso fazer um estudo completo de prospecção sísmica e geológica.  

O fogo fátuo é um fenômeno local e de superfície, ao contrário do gás natural extraído das reservas de petróleo. Ambos têm “quase” a mesma composição química. Porque o gás natural é constituído por metano e etano e o fogo fátuo é composto por metano, fosfina e disfosfano. 

Também não podemos confundir esse gás de decomposição que assombra as pessoas em cemitérios e pântanos com o biogás, que também é um gás inflamável produzido a partir da decomposição de matéria orgânica, produzindo CO2 (gás carbônico) e metano sob a ação de bactérias fermentadoras, com temperatura e teor de acidez controlada. Assim como o Gás Natural, o Biogás é largamente utilizado para a geração de energia calorífica, alimentando caldeiras, aquecedores, abastecendo veículos e outros meios de transporte, ao contrário do fogo-fátuo, que só serve mesmo para assustar. 

Ter uma explicação para um fenômeno como este não significa se contrapor ao folclore e toda a sua beleza e misticismo, mas dar uma visão holística para um fato e vice-versa sem deixar de lado a cultura brasileira, há muito difundida pelos povos indígenas. Todo povo possui suas culturas locais e suas “lendas urbanas” e isso só enriquece o modo de ver a ciência e a ensinar para as gerações futuras, de modo que ela não morra ou se perca para sempre. 

(*) Luciane de Godoi é Professora do curso de Química da Área de Exatas do Centro Universitário Internacional Uninter. 


Notícias Relacionadas »
© 2024 Sala da Notícia - Todos os direitos reservados.
Fale pelo Whatsapp
Atendimento
Precisa de ajuda? fale conosco pelo Whatsapp